Citações:
“O
modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico
cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o
território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais
deste país. Mas é também um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país”
- Milton Santos, em "As cidadanias mutiladas". In______. O preconceito (vários autores). São Paulo. IMESP, 1996-1997, p. 135.
- Milton Santos, em "As cidadanias mutiladas". In______. O preconceito (vários autores). São Paulo. IMESP, 1996-1997, p. 135.
"A educação corrente e formal, simplificadora das realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele se ponha à altura do seu tempo histórico."
- Milton Santos, em "Do cidadão imperfeito ao consumidor mais que perfeito". do livro "O espaço do cidadão". (coleção Milton Santo, 8). São Paulo, Edusp, 2007, p. 57.
Milton Santos, Brotas de Macaúbas, Chapada Diamantina, 3 de maio de 1926, nasce Milton Santos, filho de Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos Santos, ambos professores primários formados pelo ICEIA. No ano de seu nascimento, o Brasil passa por uma grande agitação política e social, com a impopularidade do então Presidente da República Artur Bernardes e a eleição de Washington Luís. É a época da Coluna Prestes.
A família de sua
mãe, cujos pais eram também professores primários, gozava de prestígio
por onde passava. Já a família paterna era mais humilde e descendia de
escravos. Os pais de Milton sabiam que o caminho para a liberdade era a
educação. Conheceram-se em 1921, a poucos dias da festa de formatura do
Sr. Francisco, na escola Normal de Salvador. D. Adalgisa ingressaria na
mesma escola em 1924, casando-se nesse mesmo ano.
Partiram, então,
para Brotas de Macaúbas, onde morava um irmão mais velho de D. Adalgisa,
Dr. Agenor, advogado brilhante na região, conhecedor do latim e do
grego. Sua clientela era importante, e seu projeto de vida deu certo, a
ponto de ser proprietário de um Ford Bigode, que às vezes desaparecia de
circulação, já que a gasolina vinha de Salvador e nem sempre chegava
regularmente.
O curso primário, Milton o fez em Alcobaça, com os pais, que lhe ensinaram o francês, entre os oito e dez anos. Ali nasceram Nailton e Yeda, seus irmãos. Aos 10 anos, prestou exame de admissão no Instituto Baiano de Ensino, tradicional colégio de Salvador, dirigido pelo Professor Hugo Balthazar da Silveira. Passou em primeiro lugar e foi aceito como aluno interno. Pela primeira vez longe da família, conhece o significado da palavra saudade. Foi colega e amigo de Dr. Geraldo Milton da Silveira, Dezildo Menezes Pereira, Methódio Coelho, Bernardo Leone, entre outros. Criou e dirigiu o jornal “O Farol”, que promovia debates literários e difundia conceitos filosóficos. Mais tarde fundou “O Luzeiro”, para o qual “redigia textos, incentivava os colegas a fazê-los, revisava-os, fazia a paginação e distribuía o jornal”, segundo Geraldo Milton, que acrescenta: “Nele eram publicadas obras de romancistas, contistas, poetas pobres e iniciantes e literatura de cordel.”
O curso primário, Milton o fez em Alcobaça, com os pais, que lhe ensinaram o francês, entre os oito e dez anos. Ali nasceram Nailton e Yeda, seus irmãos. Aos 10 anos, prestou exame de admissão no Instituto Baiano de Ensino, tradicional colégio de Salvador, dirigido pelo Professor Hugo Balthazar da Silveira. Passou em primeiro lugar e foi aceito como aluno interno. Pela primeira vez longe da família, conhece o significado da palavra saudade. Foi colega e amigo de Dr. Geraldo Milton da Silveira, Dezildo Menezes Pereira, Methódio Coelho, Bernardo Leone, entre outros. Criou e dirigiu o jornal “O Farol”, que promovia debates literários e difundia conceitos filosóficos. Mais tarde fundou “O Luzeiro”, para o qual “redigia textos, incentivava os colegas a fazê-los, revisava-os, fazia a paginação e distribuía o jornal”, segundo Geraldo Milton, que acrescenta: “Nele eram publicadas obras de romancistas, contistas, poetas pobres e iniciantes e literatura de cordel.”
“Na minha geração, ser cultivado fazia parte da vida”.
Havia o culto a escritores e intelectuais, como Castro Alves, Rui
Barbosa, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Eça de Queiroz, cujas obras
eram lidas e comentadas. Milton Santos sempre se distinguiu em
Matemática e Filosofia. Na Geografia, era admirador de Josué de Castro,
que descobriu através de seu professor do Curso secundário, Oswaldo
Imbassay. Bem mais tarde, os dois, Milton e Josué, exilados na França,
reencontraram-se, infelizmente pouco tempo, pois Josué veio a falecer,
sem receber as homenagens que o Brasil lhe devia. Nessa época, como
Milton costumava dizer, a Bahia era uma “ilha”, uma cultura não
industrializada.
Já na Faculdade de
Direito, Milton empolgava seus colegas com discursos pela democracia. De
seu grupo de intelectuais faziam parte Fernando Santana, João Falcão,
Jacó Gorender, entre outros. O término do curso de Direito coincide com a
morte do seu Tio Agenor, numa travessia do Rio São Francisco, quando
voltava de Salvador, onde fora articular sua campanha para deputado
estadual. Um episódio entre dois grupos pela disputa do grêmio
estudantil fez com que Simões Filho, ex-ministro da educação e dono do
poderoso jornal A TARDE, conhecesse Milton e o convidasse para trabalhar
na redação do jornal quando terminasse a Faculdade. Esse foi o início
de uma amizade profunda e duradoura entre os dois. Era uma época
movimentada, com o fim do Estado Novo e da 2ª Guerra Mundial.
Os pais de
Milton, após a longa estada no interior, voltaram para Salvador em 1940,
estabelecendo-se na casa de D. Maria José, tia de Milton, no Gravatá,
localidade no entorno da Baixa dos Sapateiros. Poucos anos depois, com
financiamento da Caixa Econômica, compram a casa da Estrada da Rainha,
onde fundaram uma escolinha que até hoje funciona sob a direção da
Profª. Altair Gabrielli, prima de Milton.
Depois de formado,
Milton foi professor de Geografia do ICEIA e do Colégio Central.
Submeteu-se a concurso com a tese Povoamento da Bahia, passando, então, a
ocupar, como catedrático, a cadeira de Geografia Humana do Ginásio
Municipal de Ilhéus, ocasião em que já era correspondente do jornal A
TARDE. A maneira como descrevia os fatos e a elegância dos textos fez de
Simões Filho um seu admirador. Auta Rosa Calazans Neto, em conversa
informal, conta que, ainda menina, no colégio das freiras, ela e suas
colegas, em Ilhéus, admiravam aquele professor que dava aulas no Ginásio
Estadual, sempre elegantemente vestido, sem dispensar o colete. Uma
dessas meninas, Maria da Conceição Malta (morta recentemente), veio a
ser, posteriormente, uma das suas colaboradoras no Laboratório que mais
tarde seria fundado para os trabalhos de pesquisa em Geografia na UFBA.
Incentivada por ele, como o foram muitos outros, seguiu a França, para
curso de Pós-Graduação, onde se casa, tornando-se Lecarpentier. Recebeu
apoio intelectual e financeiro do Dr.Milton e da “família” do
Laboratório para a primeira viagem à França. Durante todo tempo,
permaneceram sempre amigos.
Ilhéus foi
fundamental para Milton. Lá ele escreve artigos de grande importância
para o jornal e publica o livro “A Zona do Cacau “, onde já aconselha
veementemente as autoridades e os proprietários de terra a abandonarem a
monocultura, sob pena de sofrerem um desastre econômico mais tarde.
Nessa época, começa a se interessar pela AGB, Associação de Geógrafos
Brasileiros, após uma das viagens ao Rio de Janeiro para curso de férias
promovido pelo IBGE e onde conhece Aroldo de Azevedo e outros grandes
nomes da Geografia da época.
Milton Santos - foto: (...) |
É em Ilhéus também
que conhece Jandira Rocha, com quem se casa e tem o primeiro filho,
Milton Santos Filho mais tarde, brilhante professor da Faculdade de
Economia da UFBA e ex-Secretário de Finanças da gestão Lídice da Mata.
Milton Filho, falecido prematuramente em plena fase de produção
intelectual, foi casado com a Ana Fernandes, professora doutora, atual
diretora da Faculdade de Arquitetura da UFBA, com quem teve dois filhos,
Nina e Alei. A morte de seu filho em 96, bem como a de seu irmão
Nailton, pouco depois, é um duro golpe para esse homem tão ligado aos
dois. Por volta de 1955 ou 56, vem para Salvador já casado, e assiste à
formatura de Nailton, seu irmão, também bacharel em Direito. Yeda, sua
irmã, então estudante de Medicina, ministrava cursos de inglês, alemão,
latim, e espanhol na casa da Estrada da Rainha. Milton aluga um
apartamento no Loteamento Lanat, muda-se em seguida para o Tororó, e,
finalmente, para o Chame-Chame.
A essa época,
ocupava o cargo de editorialista do jornal A TARDE e de professor da
Faculdade Católica de Filosofia, cujo diretor, Irmão Gonzaga, dedicava
uma grande amizade e admiração ao jovem professor. Do jornal A TARDE
tinha como amigos o professor Ari Guimarães e Jorge Calmon, esse último,
redator chefe do jornal. Nesse tempo, as amizades tinham um significado
maior. Durante o tempo em que permaneceu nesse jornal, escreveu 116
artigos versando sobre a zona do cacau, a cidade do Salvador, Europa e
África e outros temas locais e globais. A formação de Milton muito se
deve a Simões Filho, cuja admiração era mútua. Uma grande e afetuosa
família: esse era o caráter que Simões Filho quis imprimir à redação do
seu jornal. Mais tarde, esse exemplo seria seguido por Milton Santos,
com sua equipe do Laboratório de Pesquisa em Geografia, fundado em 1959.
Em 1956 por ocasião
do Congresso Internacional de Geografia no Rio de Janeiro, Milton
encontra-se com os grande geógrafos que já conhecia por suas obras, tais
como Orlando Ribeiro, de Portugal, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines,
Pierre Birot, André Cailleux e o seu mestre maior Jean Tricart. “ Com
ele aprendi o rigor, a vontade de disciplina, a obediência a projetos e o
gosto de discutir” dizia Milton. Impressionado com a inteligência e a
cultura do jovem professor, Tricart, convida-o para um curso de
Doutorado no Instituto de Geografia da Universidade de Strasbourg, um
dos mais renomados da Europa. Assim, Milton Santos fez a sua primeira
grande travessia do Atlântico, em direção ao que seria, mais tarde, seu
segundo país, ao recebê-lo, anos depois, como exilado.
Volta a Bahia, após defender com brilhantismo sua tese de doutorado “O Centro da Cidade do Salvador”,
um clássico da Geografia, tão atual como se fosse hoje escrito. Ainda
como professor da Faculdade Católica de Filosofia, trazia professores
franceses (Jean Tricart, Pierre George, Jacqueline Beaujeu-Garnier,
Etienne Juillard, Michel Rochefort, Pierre Monbeig, Guy Lassèrre,
Bernard Kayser, dentre outros) , portugueses (Orlando Ribeiro, Raquel
Soeiro de Brito, Fernandes Martins e outros) e brasileiros (Manoel
Correia de Andrade, Araújo Filho, Aziz Ab’Saber, Aroldo de Azevedo,
Orlando Valverde, Penteado, Luís Rodrigues e Lyzia e Nilo Bernardes,
entre outros) para conferências abertas ao público. Entre esses
professores encontravam-se também as jovens professoras Teresa Cardoso
da Silva, Nilda Guerra de Macedo e Ana Dias da Silva Carvalho, as duas
primeiras também recém-doutoras por Strasbourg. Em fins da década de 50,
Milton inscreve-se no concurso para livre docência da Faculdade de
Filosofia da Universidade da Bahia mas, surpreendentemente, o concurso
não se realiza, por razões que o professor Délio Pinheiro classifica
como vinculadas a uma “oligárquica e segregacionista sociedade baiana de belas gravatas e verdades encobertas.”
Milton Santos recorre à justiça, tendo como advogado o então Deputado
Federal e futuro Senador Nelson Carneiro, vencendo em todas as
instâncias e tendo se submetido com brilhantismo ao concurso em 1960,
com a tese “Os Estudos Regionais e o Futuro da Geografia”.
Após a chegada à
Bahia, em 1958, vindo da França, instala seu escritório no Edifício
Antônio Ferreira, na rua Chile. Nessa ocasião, conhece, numa cerimônia, o
então reitor da Universidade, Edgard Santos. Como é de costume na
França o cumprimento com um aperto de mão, Milton faz esse gesto em
direção ao Reitor, tido como aristocrata, que fica impressionado com o
gesto, com a simpatia e elegância do jovem professor e, por isso, num
encontro dias depois, encarregou-o de organizar um grupo de pesquisa, em
cujo nome, entretanto não deveria figurar a palavra Geografia, já que a
direção não seria dos professores da Faculdade. Assim, com o apoio do
reitor Edgard Santos e do encontro como o professor Tricart, no Hotel da
Bahia (único hotel moderno da cidade daquele tempo), representando a
Cooperação Técnica Francesa, cria-se o Laboratório de Geomorfologia e
Estudos Regionais da Universidade da Bahia em 1º de Janeiro de 1959. A
França – com o General De Gaulle na Presidência e o Ministro da
Educação, André Malraux – abria-se, sobretudo para a América Latina. A
essa altura, com equipe já organizada, formada pelas três jovens
professoras acima citadas, por jovens estudantes de Geografia e de
História e por recém-formados, inicia-se a fase da pesquisa de Geografia
da Bahia, cujo ensino, na Universidade da Bahia, já contava com nomes
de peso como o dos professores Dalmo Guimarães Pontual e Waldir Freitas
Oliveira. Para sediar os trabalhos do grupo, o professor Hélio Simões
cedeu um espaço do seu laboratório de Estudos Portugueses, nos fundos da
Faculdade de Filosofia. Nesse mesmo ano, Milton Santos organiza o IV
Colóquio Internacional Luso-Brasileiro, com o patrocínio da Universidade
da Bahia e da UNESCO. Nessa ocasião, professores vindos de várias
partes do mundo trocaram idéias no campo da Geografia e das ciências
sociais.
Milton Santos - foto: Luciano da Mata/Ag. a Tarde |
A década de 60
pode ser considerada como a época áurea de Geografia na Bahia, pois o
Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais representou uma
proposta acadêmica renovadora. Nele, a ciência geográfica era tratada
não apenas como técnica, mas com reflexão. Além de atrair jovens vindos
de todo o Brasil e da França, no Laboratório a motivação era constante:
trabalhos de campo, seminários, cursos, apresentações de trabalhos,
leituras comentadas, reuniões científicas, enfim, um ambiente de
efervescência cultural e científica. Estudos e diagnósticos sobre
Salvador e o Estado da Bahia foram realizados pela equipe, a partir de
solicitações de organismos administrativos. O ambiente era de troca
intelectual sem competições negativas. Dessa forma, Milton Santos
promove a Geografia ao status de disciplina nobre, aproximando-a de
outras ciências: política, economia, história, sociologia e filosofia.
É desse tempo
(entre 1959 e 1964) o trabalho exaustivo denominado Programa de Estudos
Geomorfológicos e de Geografia Humana da bacia do Rio Paraguaçu, estudo
que teve o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida
das populações locais, realizado por solicitação da Comissão de
Planejamento do Estado e com o apoio do Instituto Joaquim Nabuco de
Pernambuco. Um outro grande projeto foi o estudo sobre o uso da terra
nas zonas cacaueira e ocidental do recôncavo, para o Serviço Social
Rural, já com análise aerofotogramétrica. Entre 1958 e 1964 foram
publicados mais de 60 títulos, livros e artigos de revistas, de autoria
de professores brasileiros e estrangeiros. Os deslocamentos eram feitos
em um Citroën deux-chevaux, modelo especial para trabalho de campo,
oferecido pela Cooperação Francesa, que também doou equipamento para o
LGERUB, e no ônibus da recém fundada Escola de Geologia da Universidade.
Era nessa época que
o Dr. Thales de Azevedo, então diretor da Fundação para o
Desenvolvimento da Ciência, na Bahia, mantinha um seminário freqüentado
por sociólogos, geógrafos, economistas, antropólogos. Nele,
distinguiam-se intelectuais como Jorge Calmon, Frederico Edelweiss,
Raymond Vander Haegen, cônsul da França e diretor da excelente Casa da
França, Clarival do Prado Valadares, Pinto de Aguiar, Luis Navarro de
Brito, Valentin Calderon, José Calazans, Luis Henrique Tavares, Edite da
Gama e Abreu, Isaias Alves, Lísia e Vital Duarte, Fernando Santana, e
os muito jovens Fernando Pedrão, Severo Salles e Remy de Souza, entre
outros. Nesse ambiente, cria-se o Boletim Baiano de Geografia, que se
manteve até 1969, que publicava artigos de geógrafos do Brasil e da
França.
Nessa época,
destacam-se, ainda outros centros de ensino e pesquisa, tais como o
Instituto de Economia e Finanças, o Gabinete de Estudos Portugueses, o
Laboratório de Fonética e o Gabinete de Filologia Românica.
Durante todo esse
período, a equipe do laboratório participava ativamente das reuniões
anuais da Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) nas quais se
estudava, exaustivamente, a cidade sede do encontro e seu entorno.
Durante 15 dias a AGB era um espaço intelectual importante na época. Em
63, Milton Santos foi eleito presidente da AGB não sem enfrentar, em
Penedo-Alagoas, sede da reunião da AGB em 1962, preconceitos quanto à
sua candidatura, sendo veementemente defendido, na ocasião, por Caio
Prado Júnior, então editor da Brasiliense. Um ano depois, realizou-se
com grande sucesso a AGB em Jequié, sob a presidência de Milton.
Milton Santos - foto: (...) |
A implantação de
uma nova filosofia de trabalho em Geografia, até então inexistente no
Brasil, abre espaços para a geração de pesquisas, capazes de movimentar
outras mentes e acionar novas idéias.
Em meio a esse
clima, é colhido pela longa noite iniciada em 1964. Avisado de que
corria perigo, é convidado pelo prof. Van der Haegen, cônsul honorário
da França, para abrigar-se em sua casa, ao tempo em que Nailton, seu
irmão, é acolhido na casa de Celso Furtado. De nada adiantou para
Milton: enquanto Nailton, ainda em abril, partia para o México de onde,
só lá chegando, comunicou-se com a família, Milton era preso e enviado
para o 19 BC, no Cabula, um fim de mundo, na época, onde parte de sua
equipe do laboratório e seus amigos iam diariamente visitá-lo, sem poder
aproximar-se muito. Com ele, na cela,no “espaço doméstico”, ficaram
Auto de Castro, professor de Filosofia da Universidade da Bahia, e o
engenheiro Ernesto Dremher, superintendente da Refinaria Landulfo Alves,
de Mataripe.
Sobre Milton, diz Auto de Castro: “Em
1949, conheci Milton. A Bahia, nessa época, era muito pequena. Havia
uma convergência social para a rua Chile; a elite da Bahia se reunia no
Café de Bernadete, que era a sede do Partido Socialista. Era uma
portinha junto a Livraria Civilização Brasileira, mais tarde sede da
VASP. Intelectuais, poetas, gente da Academia de Letras e políticos aí
se reuniam, enquanto moças casadouras, senhoras da sociedade e até a
burguesia baiana desfilavam entre ás 16 e 18:30 na rua famosa. Naquela
época, havia um espirito na cidade: comentários, anedotas e todos os
fatos políticos eram imediatamente conhecidos na rua Chile, devidamente
desdobrados e criticados. Hoje não existe mais isso – a cidade cresceu
muito e perdeu esse espírito.”
Enquanto esteve na
prisão, chegavam cartas e convites de várias Universidades francesas. O
próprio Van der Haegen serviu de intermediário entre o governo francês e
o Coronel Humberto Melo, responsável pelo 19 BC, segundo ainda Auto de
Castro. Na véspera de São João, devido a um inicio de derrame, foi
levado ao hospital e depois solto. Tentou ainda continuar sua vida de
cidadão e de intelectual, mas o Brasil fechou-lhe as fronteiras. Em
dezembro, conheceu uma das suas experiências mais dolorosas: deixar o
Brasil, seu filho Miltinho – o casamento já tinha terminado –, sua
família, seus amigos, suas raízes. Partiu para a Universidade de
Toulouse Le Mirail, onde seu “irmão” francês, prof. Bernard Kaiser, o
esperava, tentando proporcionar-lhe um ambiente de trabalho favorável e
oferecendo-lhe amizade de irmão. Mais tarde, na mesma Universidade,
recebeu o título de Dr. Honoris Causa, o primeiro dos 20 que receberia
durante toda a sua vida.
Milton Santos - foto: (...) |
De Toulouse, onde ficou por três anos, Milton Santos fixa-se em Bordeaux. Lá, entre os seus alunos, havia uma que se distinguia dos demais, Marie Hélène Tiercelin, que mais tarde viria a ser sua mulher, nos últimos quase trinta anos, mãe de seu segundo filho, Rafael. Marie Hélène foi um marco em sua vida pessoal e intelectual. Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranqüilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele déias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros. Observa-se que a fase de grande produção intelectual de Milton começou em início de 70, com Marie Hélène.
Marie Hélène está
grávida de Rafael. Como um presente para Milton, para que seu filho
nascesse baiano, Marie Hélène decide vir à Bahia. Era o pretexto que ele
precisava para voltar em definitivo ao Brasil, já que as duas vezes que
aqui esteve, antes de 1977 – uma das quais para a SBPC e a convite da
Profª Maria de Azevedo Brandão – foram passagens rápidas. Durante os
treze anos fora do país, estruturou a base do pensamento que analisa o
impacto social provocado pelo desenvolvimento urbano político e
econômico. Milton volta, conhecido e admirado mundialmente, já com
várias obras publicadas. Trazia um novo livro que iria revolucionar a
Geografia pelos seus conceitos, Por uma Geografia Nova, dedicado a Lígia
Ferraro, sua amiga, morta prematuramente. O lançamento do livro
aconteceu na Livraria Civilização Brasileira da Avenida Sete, nas
Mercês. No mesmo ano, professor Milton enche um auditório do Instituto
de Geociências da UFBA, com cerca de 200 pessoas vindas de todas as
partes da Bahia e do Brasil num curso de extensão sobre “A Cidade
Mundial de Nossos Dias”. Nasce Rafael, em julho de 1977.
A UFBA, entretanto,
não se interessa por reintegrá-lo como professor. Em anos anteriores,
vários reitores foram procurados para que trouxessem Milton do seu
exílio. Algumas promessas foram feitas, em vão. A UFBA, em 1977,
continuou em silêncio, assim como as demais universidades do Brasil, com
exceção do Rio Grande do Sul. Milton Santos vai para o sul, trabalha
entre São Paulo e Rio de Janeiro como consultor. Em São Paulo, é
convidado por sua amiga Maria Adélia Aparecida de Souza, na época
coordenadora de Ação Regional do governo Paulo Egydio Martins, como
consultor, enquanto não conseguia uma função na Universidade. Em 1979,
vai para o Rio de Janeiro onde é contratado como professor assistente.
Continuou realizando trabalhos esporádicos. Foram anos difíceis, pelo
fato de não saber o que lhe reservava o futuro, para ele e sua pequena
família. Finalmente, em 1984, com o apoio de jovens professores,
submete-se ao concurso para titular na USP. Foi fundamental, nesse
momento, o apoio dos amigos Maria Adélia Souza e Araújo Filho, da mesma
forma que a Professora Maria do Carmo tinha sido, na UFRJ. Na USP,
manteve um grupo de pesquisadores nos mesmos moldes do antigo
Laboratório de Geomorfologia, os quais continuam até hoje. A partir daí,
a carreira brilhante de Milton Santos começou a decolar no Brasil,
apesar de já ser conhecido no mundo inteiro. Os convites do exterior
continuaram.
Milton Santos - foto: (...) |
Em 1994, recebeu o
Prêmio Internacional Vautrin Lud, correspondente ao Nobel da Geografia,
tendo como proponente o professor Jorge Gaspar, da Universidade de
Lisboa. Costumava dizer que, a partir desse prêmio, a mídia brasileira
lhe abrira as portas. Recebeu-o na pequena cidade de Saint-Dié des
Vosges, coincidentemente na região da cidade de Strasbourg onde havia
defendido, na década de 50, o seu doutorado. Pela primeira vez na
história desse prêmio, ele era outorgado a um geógrafo que não era nem
francês nem norte-americano.
Entre 1980 e 2000,
Milton recebeu vinte títulos de Dr. Honoris Causa de Universidades do
Brasil, da América Latina e da Europa. Publicou mais de quarenta livros e
mais de 300 artigos em revistas cientificas, em português, francês e
espanhol e inglês. Seu último livro, publicado em 2001 pela editora
Record, foi : O Brasil: Território e Sociedade no Inicio do Século XXI.
Organizou diversos livros, números especiais de revistas cientificas em
português, francês e inglês. Fez pesquisas e conferências em diversos
países, dentre os quais: Japão, México, Colômbia, Costa Rica, Índia,
Argentina, Uruguai, Tunísia, Argélia, Costa do Marfim, Benin, Togo,
Gana, Panamá, Nicarágua, Espanha, Portugal, República Dominicana, Cuba,
Estados Unidos, França, Tanzânia, Venezuela, Peru, Inglaterra, Suíça,
Bélgica, Senegal e Itália. Concedeu inúmeras entrevistas à mídia falada e
escrita, a entidades diversas, a estudantes etc.
Milton Santos - foto: (...) |
Além das
universidades francesas, americanas e latino-americanas, da África e da
Ásia, Milton Santos colaborou ainda com a Complutense de Madrid, de
Barcelona e de Lisboa.
Na trajetória de
Milton Santos é importante relembrar sua disponibilidade para com os
amigos, para com os jovens, seu interesse por eles, sua percepção
aguçada que fez de cada um que privou de sua amizade, sentir-se o único.
Essa afeição também atingiu amigos como Octávio Ianni, Gervásio Neves e
Michel Patty, Joaquim Bosque Maurel, Paul Claval, Jacques Hubschman.
Estar ao lado do Profº Milton Santos traz a segurança de estar perto da
sabedoria. Sua presença é forte e ao mesmo tempo suave e sua energia,
vontade e alegria são contagiantes.
Em 24 de junho de
2001 a saudade toma o lugar de sua presença generosa, do seu sorriso
aberto, de sua fala firme e suave, ficando a certeza de termos convivido
com quem soube, mais do que ninguém, defender a construção de um mundo
mais humano.
_______
:: Fonte/por: *SILVA, Maria Auxiliadora da. Biografia do Milton Santos. in: Fundação Perseu Abramo. Disponível no link. (acessado em 29.03.2011). *Maria Auxiliadora da Silva é professora do Departamento e Mestrado de Geografia do IGEO-UFBA
"O homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação. A memória olha para o passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo concluído e inconcluso, num processo sempre renovado. Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. A consciência pelo lugar se superpõe à consciência no lugar. A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história"
- Milton Santos, em "A Natureza do Espaço". São Paulo, Editora EDUSP, 2002, p. 330.
"A
história do homem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva
entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando,
praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia
a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder
dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na
história da natureza humana. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o
estágio supremo dessa evolução.”
- Milton Santos, em "1992: A redescoberta da natureza". São Paulo: FFLCH/USP, p. 4-5.
"O sonho obriga o homem a pensar."
- Milton Santos
Milton Santos - foto: (...) |
Foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o mais alto prêmio internacional em geografia, o Prêmio Vautrin Lud (1994).
Considerada equivalente ao Nobel na Geografia, a láurea marcou o
reconhecimento de suas idéias no Brasil. Sua produção acadêmica não
permite modéstia: são cerca de 40 livros e 300 artigos científicos.
"Outrora,
os intelectuais eram homens que, na Universidade ou fora dela,
acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma
resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com
o seu tempo e não devem traí-lo."
- Milton Santos, em "1992: A redescoberta da natureza". São Paulo: FFLCH/USP, p. 11.