terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Luiz Ruffato - Contra a opressão e o obscurantismo

Essa alocução, atribuída a Quintus Severus Lauriacum, e datada de fins do século 1 ou começo do século 2, encontrada na seção de manuscritos do Museu do Vaticano em 1948, provavelmente refere-se a um cônsul que administrava alguma província do Império Romano – acredita-se que Nórica ou Rétia. O Autor, de quem nada sabemos, lamenta a gestão obscurantista e totalitária do governante, cujo nome se perdeu no tempo, e que o documento, incompleto, não revela. Abaixo, transcrevo o trecho que sobreviveu, cuja tradução deve-se ao grande latinista, padre Antônio Queiroga da Silva (1893-1961), publicado na antologia Codice Hieronymianum (Petrópolis: Vozes, 1960, p. 123-125).

“E porque nascera de gente pobre (proletarii), odiava a gente pobre, para que não o confundissem com seu passado;
E porque fora repudiado pela gente remediada (plebei), odiava a gente remediada e punia-a com pesados impostos (gravibus tributa) e perda de direitos (detrimentum iurim);
E porque fora ridicularizado pela gente rica (patricii), adulava a gente rica, porque queria ser como eles.

E porque, soldado medíocre (miles mediocriter), fora desligado das legiões militares (legionibus militum), odiava os militares e tudo fazia para humilhá-los em público;
E porque, despido de inteligência (ingenio exuti), fora desmerecido pelos companheiros (comitibus), odiava as ciências, as matemáticas, as letras, as artes, a filosofia;
E porque, filho de estrangeiro (peregrino filius), fora tratado com desdém (in fastu negas), odiava os estrangeiros, sobretudo os africanos (Africani) e os nativos (nativus).

E porque, mau amante (malum amans), fora repelido pelas mulheres, odiava as mulheres e incentivava a crueldade contra elas;
E porque, inseguro de sua virilidade (virilitatem), odiava e perseguia todos aqueles que praticavam amores não convencionais (amet ligula);
E porque, sendo preguiçoso (otiosum), odiava os que trabalhavam e buscava maneira de prejudicá-los.

E porque, possuído de espírito bélico (spiritus bellum), lançou suas milícias (militias) contra o povo;
E, porque, sacrificando a todos os deuses (sacrifice omnibus diis), menosprezava cada um deles;
E, porque odiasse o gênero humano (homines), nos legou a tirania (tyrannide), a violência (violentiam), a peste (pestis), a guerra (bellum);

Porque, pretendendo desprezar a morte, desprezava na verdade a vida.

Ó, deuses, lançai línguas de fogo (lingua ignis) sobre o Inominável (Innominabile) e seus seguidores (sectatores) para dizimar todos aqueles que,
ressentidos, pregam o ódio;
arrogantes, exaltam a ignorância;
estúpidos, vangloriam a força física;

Pois nada mais grave que a ignorância arrogante de um estúpido que, ressentido, prega o ódio entre seus semelhantes”.

Fonte: Jornal Rascunho

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Contra a opressão e o obscurantismo – Rascunho