projeto de publicação de textos, traduções e imagens de interesse de poucas mas boas pessoas que colaboram para valorizar a cultura em todas as suas diferentes manifestações - Unterstützung für das Projekt zur Veröffentlichung von Texten, Übersetzungen und Bildern, die sich an einige interessierten Leuten richten, die damit arbeiten, die Kultur in allen ihren Ebenen zu verbessern
domingo, 20 de dezembro de 2015
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
Lançamento da biografia de José Henriques Maia
Livro escrito por Maria Clara Arreguy Maia, a ser lançado pela Outubro Edições. O lançamento acontecerá em Belo Horizonte, dia 31 de outubro de 2015 e comemorará os 100 anos de nascimento do poeta mineiro.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Templo Cultural Delfos: Milton Santos - território e sociedade
Templo Cultural Delfos: Milton Santos - território e sociedade: Milton Santos
Citações:
"A educação corrente e formal, simplificadora das realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele se ponha à altura do seu tempo histórico."
- Milton Santos, em "Do cidadão imperfeito ao consumidor mais que perfeito". do livro "O espaço do cidadão". (coleção Milton Santo, 8). São Paulo, Edusp, 2007, p. 57.
Milton Santos, Brotas de Macaúbas, Chapada Diamantina, 3 de maio de 1926, nasce Milton Santos, filho de Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos Santos, ambos professores primários formados pelo ICEIA. No ano de seu nascimento, o Brasil passa por uma grande agitação política e social, com a impopularidade do então Presidente da República Artur Bernardes e a eleição de Washington Luís. É a época da Coluna Prestes.
Terminado o curso
no Baiano de Ensino, Milton se preparava, no Colégio da Bahia, para
entrar na Faculdade. A influência do tio Agenor foi fundamental na
escolha da carreira. Milton fez a Faculdade de Direito. O Brasil
declarava guerra aos países do eixo, Alemanha, Itália e Japão. Nessa
época, criou o PEP – Partido Estudantil Popular e a ABES (Associação
Brasileira de Estudantes Secundaristas, uma alternativa da UNE). Chegou a
ser candidato à presidência da UNE, mas foi aconselhado a trocar sua
candidatura para vice, deixando a presidência para um amigo comunista,
Mário Alves, com o argumento de que um negro teria dificuldades em
interagir com as autoridades. A chapa foi eleita, Milton aceitou o cargo
de vice, mas nunca esqueceu esse fato. Participa também da embaixada
pró-construção do mausoléu de Castro Alves, e sai com caravana de
estudantes pelo interior do Estado, para arrecadar fundos. Foi seu
companheiro, entre outros, Geraldo Milton. Nessa ocasião, ministrava
aulas de Geografia Humana, explicando aos alunos “os novos rumos das relações políticas que a guerra vinha determinando no planeta.”
Em Strasbourg,
apesar de ser tratado como professor, tinha contatos diretos e
agradáveis com os estudantes do mundo inteiro que freqüentavam essa
grande Universidade. Sobre ele, escreveu o professor Tricart: “O humor, a
alegria, e o sorriso de Milton, classificado como inimitável,
conquistaram a simpatia de toda a equipe da Universidade”. Milton Santos
costumava dizer que essa primeira longa viagem foi a “grande mudança da
sua visão de mundo e na sua concepção política. A partir da Europa,
seguiu para o seu primeiro contato com a África, e a compreensão dos
dois continentes o inspirou a escrever “Marianne em preto e branco”
(Marianne, figura feminina, que simboliza a França), publicado em 1960.
Diz Milton, “...a herança francesa é
muito forte, embora eu tente me libertar dela até com certa brutalidade.
Mas ela é responsável por um estilo independente que aprendi com
Sartre, distante de toda forma de militância, exceto a das idéias”.
A brilhante
carreira do Professor tomou vários rumos quando Jânio Quadros, eleito
Presidente da República, mostrou desejo de levar, na sua viagem a Cuba,
um dos redatores do jornal A TARDE, e o Prof. Jorge Calmon,
redator-chefe do jornal, indicou Milton Santos. Essa viagem aproximou os
dois, Jânio e Milton, e, logo após ser empossado, Jânio o convidou para
ser subchefe da casa civil na Bahia, cargo que exerceu durante o curto
mandato do presidente. Nessa ocasião, propôs a Jânio medidas como
punições a bancos e exportadores e imposto sobre as grandes fortunas, o
que foi acatado pelo presidente.
Logo depois, o
governador Lomanto Júnior o nomeou presidente da Comissão de
Planejamento Econômico (CPE), cargo que ele deixou em 1964. Durante o
exercício desse cargo, entre 1963 e 1964, Milton Santos tratou de temas
de política econômica e planejamento regional, a partir de uma
perspectiva científica, utilizando-se da linguagem acadêmica. Apesar de
exercer cargos tão importantes, nunca negligenciou seu trabalho no
Laboratório. Aquela casa de pesquisa e de trabalho funcionava como uma
grande família, onde a confiança, a solidariedade e o companheirismo
eram a tônica. Todos que desejaram tiveram a oportunidade de realizar
cursos de pós-graduação na França ou na África, desenvolvendo suas
aptidões, sempre estimulados pelo prof. Milton Santos, que transmitia,
além de ensinamentos, motivações e autoconfiança, através do pensamento
autônomo, crítico e criativo. Com sua capacidade inconteste de gestor,
compreendia diferenças e incentivava a produção.
É preciso dizer
que, embora afastado fisicamente, Milton esteve intelectual e
emocionalmente ligado á Bahia, e foram muitos os trabalhos que aqui
continuaram a se realizar sob sua orientação. As professoras Antônia Dea
Erdens e, posteriormente, Tereza Cardoso da Silva, no Laboratório,
continuavam o trabalho de Milton, dirigindo a equipe por ele formada.
De Toulouse, onde ficou por três anos, Milton Santos fixa-se em Bordeaux. Lá, entre os seus alunos, havia uma que se distinguia dos demais, Marie Hélène Tiercelin, que mais tarde viria a ser sua mulher, nos últimos quase trinta anos, mãe de seu segundo filho, Rafael. Marie Hélène foi um marco em sua vida pessoal e intelectual. Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranqüilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele déias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros. Observa-se que a fase de grande produção intelectual de Milton começou em início de 70, com Marie Hélène.
A partir de 1964,
também começa a sua longa trajetória pelo mundo. De Bordeaux, onde fica
durante um ano vai para Paris, onde convive com amigos franceses, entre
os quais Michel Rochefort, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Pierre George,
Guy Lassère, George e Niki Coutsinas, Oliver Dolffus, Jacques Levi e
brasileiros entre os quais Miota e Luís Navarro de Brito, Miguel Arraes,
Celso Furtado, além de alunos brasileiros que se encontravam cursando o
doutorado nas diversas universidades francesas. Para a Venezuela, onde
foi contratado para estudar Caracas no programa “Venezuela Hoje”,
financiado pelo governo da Venezuela e pela ONU, segundo informações da
Profª. Drª Antônia Dea Erdens, leva consigo alguns colaboradores: dois
brasileiros, a própria Antônia Dea e Licia do Prado Valadares, e duas
francesas: profª Hélène Lamicq – hoje reitora da Universidade de Creteil
(FR) – e Marie Hélène Tiercelin. Antes de seguir para Toronto, casa-se,
no Haiti, em 1972, com Marie Hélène. Viajam, assim, para a Universidade
Politécnica de Lima (73), Dar-es-Salaam (74-76), onde se torna amigo do
então presidente Nyerere. Daí segue para a Columbia (NY 76-77) e volta à
Venezuela (75-76). Foi também professor pesquisador durante dois anos
do Massachuselts Institute of Technology, Cambridge (71-72), quando
então é convidado para fundar um Laboratório de Geografia na Nigéria,
África.
Foi professor
visitante da Universidade de Stanford, na Cátedra de Joaquim Nabuco
(97-98). Foi Diretor de Estudos em Ciências Sociais, Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais (Paris 1998). Consultor das Nações Unidas,
OIT, OEA e UNESCO. Consultor junto aos governos da Argélia e Guiné
Bissau. Consultor junto ao Senado Federal da Venezuela para questões
metropolitanas. Membro do comitê assessor do CNPq e ex-coordenador da
Comissão de Coordenação dos Comitês Assessores do CNPq (82-85).
Coordenador da área de Arquitetura e Urbanismo da FAPESP (Fundação para o
Amparo a Pesquisa no Estado de São Paulo, 91-94). Membro da Comissão de
Alto nível do Ministério da Educação, encarregada de estudar a situação
de ensino no pais (98-90). Membro da comissão especial da Assembléia
Constituinte do estado da Bahia, encarregado de redigir um ante-projeto
de Constituição Estadual (89). Presidente da Associação Nacional de
Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR
91-93). Presidente da Associação de Pós-graduação e Pesquisa em
Geografia (ANPEGE 93-95).
Milton Santos
recebeu ainda mais de duas dezenas de medalhas, tais como: Medalha de
Mérito, Universidad de La Habana, Cuba, 1994; Colar do Centenário
(Conjunto de Obra em Geografia) Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, 1997; Ordem 16 de setembro – Primeira Classe, Estado de Mérida,
Venezuela, 1998; 11ª Medalha Chico Mendes de Resistência, Grupo Tortura
Nunca Mais, Rio de Janeiro, 1999; Medalha do Mérito, Fundação Joaquim
Nabuco, Recife,1999, entre outras. Dentre os prêmios destacam-se: Vozes
Expressivas do Final do Milênio, Universidade Gama Filho, Rio de
Janeiro, 1997; Personalidade do Ano, Instituto de Arquitetos do Brasil,
Rio de Janeiro,1997; Homem de Idéias, 1998, Caderno Idéias, Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro,1998; O Brasileiro do Século, Revista Isto É,
1999 (laureado na categoria Educação, Ciência e Tecnologia, entre 20
personalidades ); Prêmio Jabuti (melhor livro de Ciências Humanas) 1997,
com A natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, Hucitec, São
Paulo, 1996; prêmio UNESCO na categoria Ciência, 2ª edição, Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, Brasília, 2000.
Seu último prêmio foi o Multicultural Estadão Cultura, em junho de 2000,
concorrendo com inúmeras personalidades e sendo votado por milhares de
brasileiros. Numa cerimônia carregada de emoção e beleza, disse:
“Considero a indicação do prêmio Multicultural Estadão Cultura como um
presente expressivo que coroa, de alguma forma, o meu trabalho
intelectual [...] Meu desejo secreto, o desejo dos pensadores, e é
difícil confessa-lo, é que o seu trabalho possa ter alguma repercussão,
sobretudo quando ele ultrapassa os limites da sua própria área e da
universidade. O fato de seu o trabalho ter uma visibilidade em camadas
mais amplas da sociedade dá ao seu autor, não a certeza que ele tenha o
aplauso geral, mas um certo conforto de ver que o seu discurso não é um
discurso fechado. Agradeço a todos que votaram em mim, aos meus amigos e
ofereço esse prêmio a todos os brasileiros que tanto esperam de seus
intelectuais.”
Em 1996, para os
seus 70 anos, amigos se reuniram para prestar-lhe uma homenagem, num
Seminário Internacional, em São Paulo, denominado O mundo do Cidadão. Um
cidadão do mundo. Nessa ocasião, foi lançado um livro com o mesmo nome,
com depoimentos de 67 intelectuais e amigos de todas as partes do
mundo, acolhidos na ocasião pela USP, entre os quais, Manoel Correia de
Andrade, Maurício Abreu, Aurora Garcia Ballesteros, Paul Claval, Leila
Dias, Inês Costa Ferreira, Octavio Ianni, Rosa Ester Rossini, Armen
Mamigonian, Joaquim Bosque Maurel, Rui Moreira, Aldo Paviani, Richard
Peet, Ana Clara Torres Ribeiro, Teresa Barata Salgueiro, David Slater,
Neil Smith, Marlene d`Aragão Carneiro, Teresa Cardoso da Silva, José
Estebanez Alvarez, Jacques Lévy, Creuza Santos Lage, Neyde Maria
Gonçalves, Sílvio Dvorecki, Saskia Sassen, Maria Azevedo Brandão, Délio
Ferraz Pinheiro, Carlos Reboratti, Graciela Ortega, Daniel
Hiernaux-Nicolas, Jorge Gaspar, Pedro Geiger, Ruy Moreira, Adir
Rodrigues, Ana Fani Carlos, Pablo Ciccolella, José Borzacchiello, Ana
Clara Ribeiro, José Estabanez Álvarez, Miguel Panadero, Ana Maria
Gicoechea, Terence McGee, Germân Wettstein, Maria Auxiliadora da Silva,
Remy Knafou, Pedro Vasconcelos e Sílvio Bandeira de Melo entre muitos
outros. A Profª. Maria Adélia Aparecida de Souza e o grupo de jovens
mestrandos e doutorandos do Profº. Milton Santos na USP, organizaram a
cerimônia. O livro foi organizado pela Profª. Maria Adélia de Souza, que
contou com a colaboração dos Profs. George Benko, de Paris-Sorbonne;
Hélène Lamicq da Universidade de Creteil, Milton Santos Filho da
Faculdade de Economia da UFBA; Luiz Cruz Lima da Universidade do Ceará e
Maria Auxiliadora da Silva da UFBA. Esta cerimonia marcou o
reconhecimento pleno da importância do Milton Santos.
Segundo Maria Adélia de Souza, “Milton
foi exilado político. Mas, como poucos não tira proveito disso, exerce
vivamente a ética na política. Jamais se comportou como vitrine do
regime militar [...] Sofreu todas as dificuldades para se estabelecer e
sobretudo, reingressar na vida e nas universidades brasileiras. Apesar
das vicissitudes, procura exercer o seu labor e construir, aí sim, um
profundo pensamento teórico e político que o Brasil e os brasileiros
necessariamente, aos poucos estão tendo de conhecer e admirar. Milton se
instala, não como herói que volta carregado nos braços do povo mas,
difícil, cautelosa e profundamente vai se impondo como um dos principais
pensadores e intelectuais brasileiros, com um pensamento e uma posição
política profundos e inarredáveis. No exílio, se dedica obstinadamente
aos estudos. É aí que fundamenta, sem dúvida nenhuma, sua obra
posterior.”
"O homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação. A memória olha para o passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo concluído e inconcluso, num processo sempre renovado. Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. A consciência pelo lugar se superpõe à consciência no lugar. A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história"
- Milton Santos, em "A Natureza do Espaço". São Paulo, Editora EDUSP, 2002, p. 330.
Citações:
“O
modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico
cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o
território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais
deste país. Mas é também um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país”
- Milton Santos, em "As cidadanias mutiladas". In______. O preconceito (vários autores). São Paulo. IMESP, 1996-1997, p. 135.
- Milton Santos, em "As cidadanias mutiladas". In______. O preconceito (vários autores). São Paulo. IMESP, 1996-1997, p. 135.
"A educação corrente e formal, simplificadora das realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele se ponha à altura do seu tempo histórico."
- Milton Santos, em "Do cidadão imperfeito ao consumidor mais que perfeito". do livro "O espaço do cidadão". (coleção Milton Santo, 8). São Paulo, Edusp, 2007, p. 57.
Milton Santos, Brotas de Macaúbas, Chapada Diamantina, 3 de maio de 1926, nasce Milton Santos, filho de Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos Santos, ambos professores primários formados pelo ICEIA. No ano de seu nascimento, o Brasil passa por uma grande agitação política e social, com a impopularidade do então Presidente da República Artur Bernardes e a eleição de Washington Luís. É a época da Coluna Prestes.
A família de sua
mãe, cujos pais eram também professores primários, gozava de prestígio
por onde passava. Já a família paterna era mais humilde e descendia de
escravos. Os pais de Milton sabiam que o caminho para a liberdade era a
educação. Conheceram-se em 1921, a poucos dias da festa de formatura do
Sr. Francisco, na escola Normal de Salvador. D. Adalgisa ingressaria na
mesma escola em 1924, casando-se nesse mesmo ano.
Partiram, então,
para Brotas de Macaúbas, onde morava um irmão mais velho de D. Adalgisa,
Dr. Agenor, advogado brilhante na região, conhecedor do latim e do
grego. Sua clientela era importante, e seu projeto de vida deu certo, a
ponto de ser proprietário de um Ford Bigode, que às vezes desaparecia de
circulação, já que a gasolina vinha de Salvador e nem sempre chegava
regularmente.
O curso primário, Milton o fez em Alcobaça, com os pais, que lhe ensinaram o francês, entre os oito e dez anos. Ali nasceram Nailton e Yeda, seus irmãos. Aos 10 anos, prestou exame de admissão no Instituto Baiano de Ensino, tradicional colégio de Salvador, dirigido pelo Professor Hugo Balthazar da Silveira. Passou em primeiro lugar e foi aceito como aluno interno. Pela primeira vez longe da família, conhece o significado da palavra saudade. Foi colega e amigo de Dr. Geraldo Milton da Silveira, Dezildo Menezes Pereira, Methódio Coelho, Bernardo Leone, entre outros. Criou e dirigiu o jornal “O Farol”, que promovia debates literários e difundia conceitos filosóficos. Mais tarde fundou “O Luzeiro”, para o qual “redigia textos, incentivava os colegas a fazê-los, revisava-os, fazia a paginação e distribuía o jornal”, segundo Geraldo Milton, que acrescenta: “Nele eram publicadas obras de romancistas, contistas, poetas pobres e iniciantes e literatura de cordel.”
O curso primário, Milton o fez em Alcobaça, com os pais, que lhe ensinaram o francês, entre os oito e dez anos. Ali nasceram Nailton e Yeda, seus irmãos. Aos 10 anos, prestou exame de admissão no Instituto Baiano de Ensino, tradicional colégio de Salvador, dirigido pelo Professor Hugo Balthazar da Silveira. Passou em primeiro lugar e foi aceito como aluno interno. Pela primeira vez longe da família, conhece o significado da palavra saudade. Foi colega e amigo de Dr. Geraldo Milton da Silveira, Dezildo Menezes Pereira, Methódio Coelho, Bernardo Leone, entre outros. Criou e dirigiu o jornal “O Farol”, que promovia debates literários e difundia conceitos filosóficos. Mais tarde fundou “O Luzeiro”, para o qual “redigia textos, incentivava os colegas a fazê-los, revisava-os, fazia a paginação e distribuía o jornal”, segundo Geraldo Milton, que acrescenta: “Nele eram publicadas obras de romancistas, contistas, poetas pobres e iniciantes e literatura de cordel.”
“Na minha geração, ser cultivado fazia parte da vida”.
Havia o culto a escritores e intelectuais, como Castro Alves, Rui
Barbosa, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Eça de Queiroz, cujas obras
eram lidas e comentadas. Milton Santos sempre se distinguiu em
Matemática e Filosofia. Na Geografia, era admirador de Josué de Castro,
que descobriu através de seu professor do Curso secundário, Oswaldo
Imbassay. Bem mais tarde, os dois, Milton e Josué, exilados na França,
reencontraram-se, infelizmente pouco tempo, pois Josué veio a falecer,
sem receber as homenagens que o Brasil lhe devia. Nessa época, como
Milton costumava dizer, a Bahia era uma “ilha”, uma cultura não
industrializada.
Já na Faculdade de
Direito, Milton empolgava seus colegas com discursos pela democracia. De
seu grupo de intelectuais faziam parte Fernando Santana, João Falcão,
Jacó Gorender, entre outros. O término do curso de Direito coincide com a
morte do seu Tio Agenor, numa travessia do Rio São Francisco, quando
voltava de Salvador, onde fora articular sua campanha para deputado
estadual. Um episódio entre dois grupos pela disputa do grêmio
estudantil fez com que Simões Filho, ex-ministro da educação e dono do
poderoso jornal A TARDE, conhecesse Milton e o convidasse para trabalhar
na redação do jornal quando terminasse a Faculdade. Esse foi o início
de uma amizade profunda e duradoura entre os dois. Era uma época
movimentada, com o fim do Estado Novo e da 2ª Guerra Mundial.
Os pais de
Milton, após a longa estada no interior, voltaram para Salvador em 1940,
estabelecendo-se na casa de D. Maria José, tia de Milton, no Gravatá,
localidade no entorno da Baixa dos Sapateiros. Poucos anos depois, com
financiamento da Caixa Econômica, compram a casa da Estrada da Rainha,
onde fundaram uma escolinha que até hoje funciona sob a direção da
Profª. Altair Gabrielli, prima de Milton.
Depois de formado,
Milton foi professor de Geografia do ICEIA e do Colégio Central.
Submeteu-se a concurso com a tese Povoamento da Bahia, passando, então, a
ocupar, como catedrático, a cadeira de Geografia Humana do Ginásio
Municipal de Ilhéus, ocasião em que já era correspondente do jornal A
TARDE. A maneira como descrevia os fatos e a elegância dos textos fez de
Simões Filho um seu admirador. Auta Rosa Calazans Neto, em conversa
informal, conta que, ainda menina, no colégio das freiras, ela e suas
colegas, em Ilhéus, admiravam aquele professor que dava aulas no Ginásio
Estadual, sempre elegantemente vestido, sem dispensar o colete. Uma
dessas meninas, Maria da Conceição Malta (morta recentemente), veio a
ser, posteriormente, uma das suas colaboradoras no Laboratório que mais
tarde seria fundado para os trabalhos de pesquisa em Geografia na UFBA.
Incentivada por ele, como o foram muitos outros, seguiu a França, para
curso de Pós-Graduação, onde se casa, tornando-se Lecarpentier. Recebeu
apoio intelectual e financeiro do Dr.Milton e da “família” do
Laboratório para a primeira viagem à França. Durante todo tempo,
permaneceram sempre amigos.
Ilhéus foi
fundamental para Milton. Lá ele escreve artigos de grande importância
para o jornal e publica o livro “A Zona do Cacau “, onde já aconselha
veementemente as autoridades e os proprietários de terra a abandonarem a
monocultura, sob pena de sofrerem um desastre econômico mais tarde.
Nessa época, começa a se interessar pela AGB, Associação de Geógrafos
Brasileiros, após uma das viagens ao Rio de Janeiro para curso de férias
promovido pelo IBGE e onde conhece Aroldo de Azevedo e outros grandes
nomes da Geografia da época.
Milton Santos - foto: (...) |
É em Ilhéus também
que conhece Jandira Rocha, com quem se casa e tem o primeiro filho,
Milton Santos Filho mais tarde, brilhante professor da Faculdade de
Economia da UFBA e ex-Secretário de Finanças da gestão Lídice da Mata.
Milton Filho, falecido prematuramente em plena fase de produção
intelectual, foi casado com a Ana Fernandes, professora doutora, atual
diretora da Faculdade de Arquitetura da UFBA, com quem teve dois filhos,
Nina e Alei. A morte de seu filho em 96, bem como a de seu irmão
Nailton, pouco depois, é um duro golpe para esse homem tão ligado aos
dois. Por volta de 1955 ou 56, vem para Salvador já casado, e assiste à
formatura de Nailton, seu irmão, também bacharel em Direito. Yeda, sua
irmã, então estudante de Medicina, ministrava cursos de inglês, alemão,
latim, e espanhol na casa da Estrada da Rainha. Milton aluga um
apartamento no Loteamento Lanat, muda-se em seguida para o Tororó, e,
finalmente, para o Chame-Chame.
A essa época,
ocupava o cargo de editorialista do jornal A TARDE e de professor da
Faculdade Católica de Filosofia, cujo diretor, Irmão Gonzaga, dedicava
uma grande amizade e admiração ao jovem professor. Do jornal A TARDE
tinha como amigos o professor Ari Guimarães e Jorge Calmon, esse último,
redator chefe do jornal. Nesse tempo, as amizades tinham um significado
maior. Durante o tempo em que permaneceu nesse jornal, escreveu 116
artigos versando sobre a zona do cacau, a cidade do Salvador, Europa e
África e outros temas locais e globais. A formação de Milton muito se
deve a Simões Filho, cuja admiração era mútua. Uma grande e afetuosa
família: esse era o caráter que Simões Filho quis imprimir à redação do
seu jornal. Mais tarde, esse exemplo seria seguido por Milton Santos,
com sua equipe do Laboratório de Pesquisa em Geografia, fundado em 1959.
Em 1956 por ocasião
do Congresso Internacional de Geografia no Rio de Janeiro, Milton
encontra-se com os grande geógrafos que já conhecia por suas obras, tais
como Orlando Ribeiro, de Portugal, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines,
Pierre Birot, André Cailleux e o seu mestre maior Jean Tricart. “ Com
ele aprendi o rigor, a vontade de disciplina, a obediência a projetos e o
gosto de discutir” dizia Milton. Impressionado com a inteligência e a
cultura do jovem professor, Tricart, convida-o para um curso de
Doutorado no Instituto de Geografia da Universidade de Strasbourg, um
dos mais renomados da Europa. Assim, Milton Santos fez a sua primeira
grande travessia do Atlântico, em direção ao que seria, mais tarde, seu
segundo país, ao recebê-lo, anos depois, como exilado.
Volta a Bahia, após defender com brilhantismo sua tese de doutorado “O Centro da Cidade do Salvador”,
um clássico da Geografia, tão atual como se fosse hoje escrito. Ainda
como professor da Faculdade Católica de Filosofia, trazia professores
franceses (Jean Tricart, Pierre George, Jacqueline Beaujeu-Garnier,
Etienne Juillard, Michel Rochefort, Pierre Monbeig, Guy Lassèrre,
Bernard Kayser, dentre outros) , portugueses (Orlando Ribeiro, Raquel
Soeiro de Brito, Fernandes Martins e outros) e brasileiros (Manoel
Correia de Andrade, Araújo Filho, Aziz Ab’Saber, Aroldo de Azevedo,
Orlando Valverde, Penteado, Luís Rodrigues e Lyzia e Nilo Bernardes,
entre outros) para conferências abertas ao público. Entre esses
professores encontravam-se também as jovens professoras Teresa Cardoso
da Silva, Nilda Guerra de Macedo e Ana Dias da Silva Carvalho, as duas
primeiras também recém-doutoras por Strasbourg. Em fins da década de 50,
Milton inscreve-se no concurso para livre docência da Faculdade de
Filosofia da Universidade da Bahia mas, surpreendentemente, o concurso
não se realiza, por razões que o professor Délio Pinheiro classifica
como vinculadas a uma “oligárquica e segregacionista sociedade baiana de belas gravatas e verdades encobertas.”
Milton Santos recorre à justiça, tendo como advogado o então Deputado
Federal e futuro Senador Nelson Carneiro, vencendo em todas as
instâncias e tendo se submetido com brilhantismo ao concurso em 1960,
com a tese “Os Estudos Regionais e o Futuro da Geografia”.
Após a chegada à
Bahia, em 1958, vindo da França, instala seu escritório no Edifício
Antônio Ferreira, na rua Chile. Nessa ocasião, conhece, numa cerimônia, o
então reitor da Universidade, Edgard Santos. Como é de costume na
França o cumprimento com um aperto de mão, Milton faz esse gesto em
direção ao Reitor, tido como aristocrata, que fica impressionado com o
gesto, com a simpatia e elegância do jovem professor e, por isso, num
encontro dias depois, encarregou-o de organizar um grupo de pesquisa, em
cujo nome, entretanto não deveria figurar a palavra Geografia, já que a
direção não seria dos professores da Faculdade. Assim, com o apoio do
reitor Edgard Santos e do encontro como o professor Tricart, no Hotel da
Bahia (único hotel moderno da cidade daquele tempo), representando a
Cooperação Técnica Francesa, cria-se o Laboratório de Geomorfologia e
Estudos Regionais da Universidade da Bahia em 1º de Janeiro de 1959. A
França – com o General De Gaulle na Presidência e o Ministro da
Educação, André Malraux – abria-se, sobretudo para a América Latina. A
essa altura, com equipe já organizada, formada pelas três jovens
professoras acima citadas, por jovens estudantes de Geografia e de
História e por recém-formados, inicia-se a fase da pesquisa de Geografia
da Bahia, cujo ensino, na Universidade da Bahia, já contava com nomes
de peso como o dos professores Dalmo Guimarães Pontual e Waldir Freitas
Oliveira. Para sediar os trabalhos do grupo, o professor Hélio Simões
cedeu um espaço do seu laboratório de Estudos Portugueses, nos fundos da
Faculdade de Filosofia. Nesse mesmo ano, Milton Santos organiza o IV
Colóquio Internacional Luso-Brasileiro, com o patrocínio da Universidade
da Bahia e da UNESCO. Nessa ocasião, professores vindos de várias
partes do mundo trocaram idéias no campo da Geografia e das ciências
sociais.
Milton Santos - foto: Luciano da Mata/Ag. a Tarde |
A década de 60
pode ser considerada como a época áurea de Geografia na Bahia, pois o
Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais representou uma
proposta acadêmica renovadora. Nele, a ciência geográfica era tratada
não apenas como técnica, mas com reflexão. Além de atrair jovens vindos
de todo o Brasil e da França, no Laboratório a motivação era constante:
trabalhos de campo, seminários, cursos, apresentações de trabalhos,
leituras comentadas, reuniões científicas, enfim, um ambiente de
efervescência cultural e científica. Estudos e diagnósticos sobre
Salvador e o Estado da Bahia foram realizados pela equipe, a partir de
solicitações de organismos administrativos. O ambiente era de troca
intelectual sem competições negativas. Dessa forma, Milton Santos
promove a Geografia ao status de disciplina nobre, aproximando-a de
outras ciências: política, economia, história, sociologia e filosofia.
É desse tempo
(entre 1959 e 1964) o trabalho exaustivo denominado Programa de Estudos
Geomorfológicos e de Geografia Humana da bacia do Rio Paraguaçu, estudo
que teve o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida
das populações locais, realizado por solicitação da Comissão de
Planejamento do Estado e com o apoio do Instituto Joaquim Nabuco de
Pernambuco. Um outro grande projeto foi o estudo sobre o uso da terra
nas zonas cacaueira e ocidental do recôncavo, para o Serviço Social
Rural, já com análise aerofotogramétrica. Entre 1958 e 1964 foram
publicados mais de 60 títulos, livros e artigos de revistas, de autoria
de professores brasileiros e estrangeiros. Os deslocamentos eram feitos
em um Citroën deux-chevaux, modelo especial para trabalho de campo,
oferecido pela Cooperação Francesa, que também doou equipamento para o
LGERUB, e no ônibus da recém fundada Escola de Geologia da Universidade.
Era nessa época que
o Dr. Thales de Azevedo, então diretor da Fundação para o
Desenvolvimento da Ciência, na Bahia, mantinha um seminário freqüentado
por sociólogos, geógrafos, economistas, antropólogos. Nele,
distinguiam-se intelectuais como Jorge Calmon, Frederico Edelweiss,
Raymond Vander Haegen, cônsul da França e diretor da excelente Casa da
França, Clarival do Prado Valadares, Pinto de Aguiar, Luis Navarro de
Brito, Valentin Calderon, José Calazans, Luis Henrique Tavares, Edite da
Gama e Abreu, Isaias Alves, Lísia e Vital Duarte, Fernando Santana, e
os muito jovens Fernando Pedrão, Severo Salles e Remy de Souza, entre
outros. Nesse ambiente, cria-se o Boletim Baiano de Geografia, que se
manteve até 1969, que publicava artigos de geógrafos do Brasil e da
França.
Nessa época,
destacam-se, ainda outros centros de ensino e pesquisa, tais como o
Instituto de Economia e Finanças, o Gabinete de Estudos Portugueses, o
Laboratório de Fonética e o Gabinete de Filologia Românica.
Durante todo esse
período, a equipe do laboratório participava ativamente das reuniões
anuais da Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) nas quais se
estudava, exaustivamente, a cidade sede do encontro e seu entorno.
Durante 15 dias a AGB era um espaço intelectual importante na época. Em
63, Milton Santos foi eleito presidente da AGB não sem enfrentar, em
Penedo-Alagoas, sede da reunião da AGB em 1962, preconceitos quanto à
sua candidatura, sendo veementemente defendido, na ocasião, por Caio
Prado Júnior, então editor da Brasiliense. Um ano depois, realizou-se
com grande sucesso a AGB em Jequié, sob a presidência de Milton.
Milton Santos - foto: (...) |
A implantação de
uma nova filosofia de trabalho em Geografia, até então inexistente no
Brasil, abre espaços para a geração de pesquisas, capazes de movimentar
outras mentes e acionar novas idéias.
Em meio a esse
clima, é colhido pela longa noite iniciada em 1964. Avisado de que
corria perigo, é convidado pelo prof. Van der Haegen, cônsul honorário
da França, para abrigar-se em sua casa, ao tempo em que Nailton, seu
irmão, é acolhido na casa de Celso Furtado. De nada adiantou para
Milton: enquanto Nailton, ainda em abril, partia para o México de onde,
só lá chegando, comunicou-se com a família, Milton era preso e enviado
para o 19 BC, no Cabula, um fim de mundo, na época, onde parte de sua
equipe do laboratório e seus amigos iam diariamente visitá-lo, sem poder
aproximar-se muito. Com ele, na cela,no “espaço doméstico”, ficaram
Auto de Castro, professor de Filosofia da Universidade da Bahia, e o
engenheiro Ernesto Dremher, superintendente da Refinaria Landulfo Alves,
de Mataripe.
Sobre Milton, diz Auto de Castro: “Em
1949, conheci Milton. A Bahia, nessa época, era muito pequena. Havia
uma convergência social para a rua Chile; a elite da Bahia se reunia no
Café de Bernadete, que era a sede do Partido Socialista. Era uma
portinha junto a Livraria Civilização Brasileira, mais tarde sede da
VASP. Intelectuais, poetas, gente da Academia de Letras e políticos aí
se reuniam, enquanto moças casadouras, senhoras da sociedade e até a
burguesia baiana desfilavam entre ás 16 e 18:30 na rua famosa. Naquela
época, havia um espirito na cidade: comentários, anedotas e todos os
fatos políticos eram imediatamente conhecidos na rua Chile, devidamente
desdobrados e criticados. Hoje não existe mais isso – a cidade cresceu
muito e perdeu esse espírito.”
Enquanto esteve na
prisão, chegavam cartas e convites de várias Universidades francesas. O
próprio Van der Haegen serviu de intermediário entre o governo francês e
o Coronel Humberto Melo, responsável pelo 19 BC, segundo ainda Auto de
Castro. Na véspera de São João, devido a um inicio de derrame, foi
levado ao hospital e depois solto. Tentou ainda continuar sua vida de
cidadão e de intelectual, mas o Brasil fechou-lhe as fronteiras. Em
dezembro, conheceu uma das suas experiências mais dolorosas: deixar o
Brasil, seu filho Miltinho – o casamento já tinha terminado –, sua
família, seus amigos, suas raízes. Partiu para a Universidade de
Toulouse Le Mirail, onde seu “irmão” francês, prof. Bernard Kaiser, o
esperava, tentando proporcionar-lhe um ambiente de trabalho favorável e
oferecendo-lhe amizade de irmão. Mais tarde, na mesma Universidade,
recebeu o título de Dr. Honoris Causa, o primeiro dos 20 que receberia
durante toda a sua vida.
Milton Santos - foto: (...) |
De Toulouse, onde ficou por três anos, Milton Santos fixa-se em Bordeaux. Lá, entre os seus alunos, havia uma que se distinguia dos demais, Marie Hélène Tiercelin, que mais tarde viria a ser sua mulher, nos últimos quase trinta anos, mãe de seu segundo filho, Rafael. Marie Hélène foi um marco em sua vida pessoal e intelectual. Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranqüilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele déias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros. Observa-se que a fase de grande produção intelectual de Milton começou em início de 70, com Marie Hélène.
Marie Hélène está
grávida de Rafael. Como um presente para Milton, para que seu filho
nascesse baiano, Marie Hélène decide vir à Bahia. Era o pretexto que ele
precisava para voltar em definitivo ao Brasil, já que as duas vezes que
aqui esteve, antes de 1977 – uma das quais para a SBPC e a convite da
Profª Maria de Azevedo Brandão – foram passagens rápidas. Durante os
treze anos fora do país, estruturou a base do pensamento que analisa o
impacto social provocado pelo desenvolvimento urbano político e
econômico. Milton volta, conhecido e admirado mundialmente, já com
várias obras publicadas. Trazia um novo livro que iria revolucionar a
Geografia pelos seus conceitos, Por uma Geografia Nova, dedicado a Lígia
Ferraro, sua amiga, morta prematuramente. O lançamento do livro
aconteceu na Livraria Civilização Brasileira da Avenida Sete, nas
Mercês. No mesmo ano, professor Milton enche um auditório do Instituto
de Geociências da UFBA, com cerca de 200 pessoas vindas de todas as
partes da Bahia e do Brasil num curso de extensão sobre “A Cidade
Mundial de Nossos Dias”. Nasce Rafael, em julho de 1977.
A UFBA, entretanto,
não se interessa por reintegrá-lo como professor. Em anos anteriores,
vários reitores foram procurados para que trouxessem Milton do seu
exílio. Algumas promessas foram feitas, em vão. A UFBA, em 1977,
continuou em silêncio, assim como as demais universidades do Brasil, com
exceção do Rio Grande do Sul. Milton Santos vai para o sul, trabalha
entre São Paulo e Rio de Janeiro como consultor. Em São Paulo, é
convidado por sua amiga Maria Adélia Aparecida de Souza, na época
coordenadora de Ação Regional do governo Paulo Egydio Martins, como
consultor, enquanto não conseguia uma função na Universidade. Em 1979,
vai para o Rio de Janeiro onde é contratado como professor assistente.
Continuou realizando trabalhos esporádicos. Foram anos difíceis, pelo
fato de não saber o que lhe reservava o futuro, para ele e sua pequena
família. Finalmente, em 1984, com o apoio de jovens professores,
submete-se ao concurso para titular na USP. Foi fundamental, nesse
momento, o apoio dos amigos Maria Adélia Souza e Araújo Filho, da mesma
forma que a Professora Maria do Carmo tinha sido, na UFRJ. Na USP,
manteve um grupo de pesquisadores nos mesmos moldes do antigo
Laboratório de Geomorfologia, os quais continuam até hoje. A partir daí,
a carreira brilhante de Milton Santos começou a decolar no Brasil,
apesar de já ser conhecido no mundo inteiro. Os convites do exterior
continuaram.
Milton Santos - foto: (...) |
Em 1994, recebeu o
Prêmio Internacional Vautrin Lud, correspondente ao Nobel da Geografia,
tendo como proponente o professor Jorge Gaspar, da Universidade de
Lisboa. Costumava dizer que, a partir desse prêmio, a mídia brasileira
lhe abrira as portas. Recebeu-o na pequena cidade de Saint-Dié des
Vosges, coincidentemente na região da cidade de Strasbourg onde havia
defendido, na década de 50, o seu doutorado. Pela primeira vez na
história desse prêmio, ele era outorgado a um geógrafo que não era nem
francês nem norte-americano.
Entre 1980 e 2000,
Milton recebeu vinte títulos de Dr. Honoris Causa de Universidades do
Brasil, da América Latina e da Europa. Publicou mais de quarenta livros e
mais de 300 artigos em revistas cientificas, em português, francês e
espanhol e inglês. Seu último livro, publicado em 2001 pela editora
Record, foi : O Brasil: Território e Sociedade no Inicio do Século XXI.
Organizou diversos livros, números especiais de revistas cientificas em
português, francês e inglês. Fez pesquisas e conferências em diversos
países, dentre os quais: Japão, México, Colômbia, Costa Rica, Índia,
Argentina, Uruguai, Tunísia, Argélia, Costa do Marfim, Benin, Togo,
Gana, Panamá, Nicarágua, Espanha, Portugal, República Dominicana, Cuba,
Estados Unidos, França, Tanzânia, Venezuela, Peru, Inglaterra, Suíça,
Bélgica, Senegal e Itália. Concedeu inúmeras entrevistas à mídia falada e
escrita, a entidades diversas, a estudantes etc.
Milton Santos - foto: (...) |
Além das
universidades francesas, americanas e latino-americanas, da África e da
Ásia, Milton Santos colaborou ainda com a Complutense de Madrid, de
Barcelona e de Lisboa.
Na trajetória de
Milton Santos é importante relembrar sua disponibilidade para com os
amigos, para com os jovens, seu interesse por eles, sua percepção
aguçada que fez de cada um que privou de sua amizade, sentir-se o único.
Essa afeição também atingiu amigos como Octávio Ianni, Gervásio Neves e
Michel Patty, Joaquim Bosque Maurel, Paul Claval, Jacques Hubschman.
Estar ao lado do Profº Milton Santos traz a segurança de estar perto da
sabedoria. Sua presença é forte e ao mesmo tempo suave e sua energia,
vontade e alegria são contagiantes.
Em 24 de junho de
2001 a saudade toma o lugar de sua presença generosa, do seu sorriso
aberto, de sua fala firme e suave, ficando a certeza de termos convivido
com quem soube, mais do que ninguém, defender a construção de um mundo
mais humano.
_______
:: Fonte/por: *SILVA, Maria Auxiliadora da. Biografia do Milton Santos. in: Fundação Perseu Abramo. Disponível no link. (acessado em 29.03.2011). *Maria Auxiliadora da Silva é professora do Departamento e Mestrado de Geografia do IGEO-UFBA
"O homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação. A memória olha para o passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo concluído e inconcluso, num processo sempre renovado. Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. A consciência pelo lugar se superpõe à consciência no lugar. A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história"
- Milton Santos, em "A Natureza do Espaço". São Paulo, Editora EDUSP, 2002, p. 330.
"A
história do homem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva
entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando,
praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia
a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder
dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na
história da natureza humana. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o
estágio supremo dessa evolução.”
- Milton Santos, em "1992: A redescoberta da natureza". São Paulo: FFLCH/USP, p. 4-5.
"O sonho obriga o homem a pensar."
- Milton Santos
Milton Santos - foto: (...) |
Foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o mais alto prêmio internacional em geografia, o Prêmio Vautrin Lud (1994).
Considerada equivalente ao Nobel na Geografia, a láurea marcou o
reconhecimento de suas idéias no Brasil. Sua produção acadêmica não
permite modéstia: são cerca de 40 livros e 300 artigos científicos.
"Outrora,
os intelectuais eram homens que, na Universidade ou fora dela,
acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma
resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com
o seu tempo e não devem traí-lo."
- Milton Santos, em "1992: A redescoberta da natureza". São Paulo: FFLCH/USP, p. 11.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Edgar o Mogrou - letra e música de Fred Maia
quando for o tempo de todos pagarem por tudo
pagarão aqueles infames que tomaram a guitarra do menino
que maltrataram o menino
que o jogaram no mundo
e que o prenderam na prisão de médicos maus
ainda assim as marcas vão continuar
na carne daquele cara que fica pelas ruas durante os dias
com sua inseparável viola
e com a livre determinação de viver
de dar valor à amizade, ao amor
segue seu caminho, menino
segue poeta e louco com seu caderninho
cheio de canções que você fez
grande poeta Mogrou
grande Edgar Allan Louco
segue seu caminho de liberdade
Conheci Edgar em Brasília em 1984. Fiz a música em sua homenagem e tive a oportunidade de cantá-la para ele. A imagem do Steppenwolf remete ao amor que ele tinha à banda. Grande Edgar! Saudades de você, amigo!
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Poema de Ricardo Hockeymask
A nail pierced my skin
blood flowed
tea tree oil stopped it flowing
before it did it mingled
and
looked like a red tree in the white porcelain
in it I could scry
a small red bird
and on it's sacred heart
a small gap
where a little feather
of hope
once flew away
Um prego perfurou minha pele
sangue fluiu
óleo da árvore do chá estancou-o
antes que ele o fizesse misturaram-se
e
parecia uma árvore rubra na porcelana branca
na qual eu poderia prever
um pequeno pássaro vermelho
e no seu coração sagrado
um pequeno vazio
onde uma ínfima pena
de esperança
uma vez voou para longe
(tradução e imagem de Fred Maia)
blood flowed
tea tree oil stopped it flowing
before it did it mingled
and
looked like a red tree in the white porcelain
in it I could scry
a small red bird
and on it's sacred heart
a small gap
where a little feather
of hope
once flew away
Um prego perfurou minha pele
sangue fluiu
óleo da árvore do chá estancou-o
antes que ele o fizesse misturaram-se
e
parecia uma árvore rubra na porcelana branca
na qual eu poderia prever
um pequeno pássaro vermelho
e no seu coração sagrado
um pequeno vazio
onde uma ínfima pena
de esperança
uma vez voou para longe
(tradução e imagem de Fred Maia)
terça-feira, 2 de junho de 2015
Enedina Alves Marques (1913-1981)
Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Brasil (1913-1981).
Enedina Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A engenheira participou da construção da Usina de Parigot de Souza e trabalhou na Secretaria Estadual de Educação, entre outros locais.
Em agosto de 1981, o jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos. Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A vítima se chamava Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou. Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.
Deu resultado. Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – organização internacional voltada aos direitos humanos, da qual participou. Mereceu biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Aos poucos, descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina, em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem, suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.
Eu mesmo, confesso, nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho, Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os cultores dessa mulher.
O cineasta Paulo Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador Sandro Luis Fernandes. A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para uma monografia no curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes indícios de que Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da universidade.
Formou-se aos 31 anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500 metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade. Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As pesquisas de Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.
A mulher baixinha, magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo, está na categoria “saiu para comprar cigarros”.
Mas não é tudo. Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron, brancos progressistas que acabaram por se tornar os seus.
Nesses redutos não teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se tem notícia. Eis o ponto.
JOSÉ CARLOS FERNANDES
jcfernandes@gazetadopovo.com.br
Gazeta do Povo - Curitiba-PR
Enedina Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A engenheira participou da construção da Usina de Parigot de Souza e trabalhou na Secretaria Estadual de Educação, entre outros locais.
Em agosto de 1981, o jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos. Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A vítima se chamava Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou. Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.
Deu resultado. Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – organização internacional voltada aos direitos humanos, da qual participou. Mereceu biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Aos poucos, descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina, em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem, suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.
Eu mesmo, confesso, nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho, Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os cultores dessa mulher.
O cineasta Paulo Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador Sandro Luis Fernandes. A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para uma monografia no curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes indícios de que Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da universidade.
Formou-se aos 31 anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500 metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade. Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As pesquisas de Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.
A mulher baixinha, magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo, está na categoria “saiu para comprar cigarros”.
Mas não é tudo. Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron, brancos progressistas que acabaram por se tornar os seus.
Nesses redutos não teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se tem notícia. Eis o ponto.
JOSÉ CARLOS FERNANDES
jcfernandes@gazetadopovo.com.br
Gazeta do Povo - Curitiba-PR
sábado, 30 de maio de 2015
quinta-feira, 23 de abril de 2015
segunda-feira, 30 de março de 2015
Pelota
"Soninho" - fotomanipulação de Fred Maia em original de Mércia Costa
Descanse em paz, nossa amada Pelota, um anjo de luz!
Nós te agradecemos por toda uma vida de amor incondicional!
Rest in peace, our beloved Pelota, an angel of light!
We thank you for a lifetime of unconditional love!
Repos dans la paix, notre bien-aimée Pelota, un ange de lumière!
Nous vous remercions pour toute une vie d'amour inconditionnel!
Riposare in pace, nostra amata Pelota, un angelo di luce!
Vi ringraziamo per una vita di amore incondizionato!
Ruhe in Frieden, unsere geliebte Pelota, einen Engel des Lichtes!
Wir danken Ihnen für eine Lebensdauer von bedingungsloser Liebe!
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Descanse em paz, Dona Deni!
O adeus a uma grande sacerdotisa
Autora: Izaurina Nunes
Era uma mulher forte, como forte são as mulheres negras. Sentada em sua velha cadeira no fundo do corredor do lado da Casa reservado à família de Dambirá, Dona Deni, do alto de seu conhecimento, parecia uma rainha. Não daquelas de contos de fada, mas uma rainha de verdade, que não ostentava sapiência, mas que em horas de conversa nos dava lições de vida. Dali dava aulas aos mais graduados pesquisadores com seus conhecimentos sobre o culto mina jeje deixado pelos escravizados que aqui estiveram e que fundaram a Casa das Minas. Era uma rainha africana.
Direta, franca, positiva, era mulher de poucas, mas precisas palavras. Tinha caráter sólido e posições firmes, traços que revelavam uma personalidade marcante - peculiar aos grandes sábios. Sem dúvida uma grande mulher.
Gostava de contar sua história e se emocionava ao narrar a primeira vez em que o vodum Bedigá, da família de Davice, incorporou em sua mãe. Viveu os tempos áureos da Casa das Minas e sentia-se orgulhosa de ter tido o privilégio de conviver com Mãe Andresa, de cuja generosidade Dona Deni colecionava vários episódios. Eram tempos de fartura na Casa das Minas, que recebia muitas doações, principalmente de gêneros alimentícios, que possibilitavam que a Casa mantivesse o apoio aos mais necessitados que ali chegavam.
Com certa melancolia, lastimava a situação atual da Casa das Minas, que já não recebe donativos como nos tempos de Mãe Andresa, o que pode ser atribuído ao individualismo característico do mundo atual e à proliferação de crenças e igrejas na sociedade moderna.
Respeitava e obedecia aos voduns. Pedia que Zomadonu, o dono da Casa, enviasse sua sucessora, para que a Casa das Minas se perpetuasse. Tinha um conhecimento acumulado pela convivência com as antigas vodunsis da Casa e uma consciência firme de seu papel de guardiã do culto e daquele templo religioso. Não arredava o pé da Casa das Minas porque deveria estar em vigília constante, à disposição daquele que batesse à porta em busca de tratamento para as coisas do espírito. Por isso zelava pela Casa das Minas para que os preceitos do culto mina jeje fossem mantidos. Guardava os segredos como quem guarda um tesouro. E era, para ela, de fato, um tesouro: o legado que as divindades do Abomey nos deixaram. Comandou a Casa das Minas com sabedoria singular, associando a devoção católica ao culto aos voduns.
Tinha um jeito didático de explicar, à luz do culto mina jeje, o porquê da obediência aos voduns e o porquê das catástrofes naturais, dos terremotos, dos tsunamis, dos dramas das famílias - com a avassaladora epidemia do narcotráfico; e das patologias sociais em geral.
A Casa das Minas não é importante só pra o Maranhão como muitos pensam, dizia Dona Deni. É importante para todo o Mundo. Essa era a sua visão do culto, fundada numa cosmovisão em que o culto aos voduns poderia não só ajudar as pessoas que para a Casa se dirigiam, mas até salvar o planeta.
No dia de sua partida, caiu uma chuva tímida, num dia ensolarado, quando todos se preparavam para levar o corpo de Dona Deni à morada final. Coincidência? Não. Eram as lágrimas de Nochê Sobô se despedindo da velha matriarca da Casa das Minas. Um agradecimento pelos anos de dedicação ao culto aos voduns.
A partida de Dona Deni deixou uma dor muito grande naqueles que aprenderam a gostar dela do jeito que ela era. Uma mulher silenciosa, lacônica, taciturna, séria, às vezes zangada. Não era pessoa difícil. Talvez castigada pelo sofrimento que a vida lhe impôs, de mulher pobre, vinda do interior com sua mãe que buscava cura na Casa das Minas.
Para quem aprendeu a dialogar com Dona Deni - num diálogo em que ouvir era mais importante que falar; e a conhecer aquela mulher de forte personalidade, a matriarca da Casa das Minas era uma sacerdotisa que carregou sobre seus ombros, ao longo de mais de 70 anos, uma grande responsabilidade: preservar o culto aos voduns. E para isso, como chefe da Casa, fez a opção de manter a dignidade e a integridade do culto num mundo transformado, de valores questionáveis, onde parece não caber mais os códigos e normas do mundo sagrado das divindades africanas. Com muito zelo cuidou da Casa das Minas. Cumpriu sua missão como uma grande sacerdotisa que foi.
Nós agradecemos todo o teu esforço e o teu empenho na preservação dessa herança para nós deixada por nossos ancestrais.
Autora: Izaurina Nunes
Era uma mulher forte, como forte são as mulheres negras. Sentada em sua velha cadeira no fundo do corredor do lado da Casa reservado à família de Dambirá, Dona Deni, do alto de seu conhecimento, parecia uma rainha. Não daquelas de contos de fada, mas uma rainha de verdade, que não ostentava sapiência, mas que em horas de conversa nos dava lições de vida. Dali dava aulas aos mais graduados pesquisadores com seus conhecimentos sobre o culto mina jeje deixado pelos escravizados que aqui estiveram e que fundaram a Casa das Minas. Era uma rainha africana.
Direta, franca, positiva, era mulher de poucas, mas precisas palavras. Tinha caráter sólido e posições firmes, traços que revelavam uma personalidade marcante - peculiar aos grandes sábios. Sem dúvida uma grande mulher.
Gostava de contar sua história e se emocionava ao narrar a primeira vez em que o vodum Bedigá, da família de Davice, incorporou em sua mãe. Viveu os tempos áureos da Casa das Minas e sentia-se orgulhosa de ter tido o privilégio de conviver com Mãe Andresa, de cuja generosidade Dona Deni colecionava vários episódios. Eram tempos de fartura na Casa das Minas, que recebia muitas doações, principalmente de gêneros alimentícios, que possibilitavam que a Casa mantivesse o apoio aos mais necessitados que ali chegavam.
Com certa melancolia, lastimava a situação atual da Casa das Minas, que já não recebe donativos como nos tempos de Mãe Andresa, o que pode ser atribuído ao individualismo característico do mundo atual e à proliferação de crenças e igrejas na sociedade moderna.
Respeitava e obedecia aos voduns. Pedia que Zomadonu, o dono da Casa, enviasse sua sucessora, para que a Casa das Minas se perpetuasse. Tinha um conhecimento acumulado pela convivência com as antigas vodunsis da Casa e uma consciência firme de seu papel de guardiã do culto e daquele templo religioso. Não arredava o pé da Casa das Minas porque deveria estar em vigília constante, à disposição daquele que batesse à porta em busca de tratamento para as coisas do espírito. Por isso zelava pela Casa das Minas para que os preceitos do culto mina jeje fossem mantidos. Guardava os segredos como quem guarda um tesouro. E era, para ela, de fato, um tesouro: o legado que as divindades do Abomey nos deixaram. Comandou a Casa das Minas com sabedoria singular, associando a devoção católica ao culto aos voduns.
Tinha um jeito didático de explicar, à luz do culto mina jeje, o porquê da obediência aos voduns e o porquê das catástrofes naturais, dos terremotos, dos tsunamis, dos dramas das famílias - com a avassaladora epidemia do narcotráfico; e das patologias sociais em geral.
A Casa das Minas não é importante só pra o Maranhão como muitos pensam, dizia Dona Deni. É importante para todo o Mundo. Essa era a sua visão do culto, fundada numa cosmovisão em que o culto aos voduns poderia não só ajudar as pessoas que para a Casa se dirigiam, mas até salvar o planeta.
No dia de sua partida, caiu uma chuva tímida, num dia ensolarado, quando todos se preparavam para levar o corpo de Dona Deni à morada final. Coincidência? Não. Eram as lágrimas de Nochê Sobô se despedindo da velha matriarca da Casa das Minas. Um agradecimento pelos anos de dedicação ao culto aos voduns.
A partida de Dona Deni deixou uma dor muito grande naqueles que aprenderam a gostar dela do jeito que ela era. Uma mulher silenciosa, lacônica, taciturna, séria, às vezes zangada. Não era pessoa difícil. Talvez castigada pelo sofrimento que a vida lhe impôs, de mulher pobre, vinda do interior com sua mãe que buscava cura na Casa das Minas.
Para quem aprendeu a dialogar com Dona Deni - num diálogo em que ouvir era mais importante que falar; e a conhecer aquela mulher de forte personalidade, a matriarca da Casa das Minas era uma sacerdotisa que carregou sobre seus ombros, ao longo de mais de 70 anos, uma grande responsabilidade: preservar o culto aos voduns. E para isso, como chefe da Casa, fez a opção de manter a dignidade e a integridade do culto num mundo transformado, de valores questionáveis, onde parece não caber mais os códigos e normas do mundo sagrado das divindades africanas. Com muito zelo cuidou da Casa das Minas. Cumpriu sua missão como uma grande sacerdotisa que foi.
Nós agradecemos todo o teu esforço e o teu empenho na preservação dessa herança para nós deixada por nossos ancestrais.
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