quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Descanse em paz, Dona Deni!

O adeus a uma grande sacerdotisa
Autora: Izaurina Nunes

Era uma mulher forte, como forte são as mulheres negras. Sentada em sua velha cadeira no fundo do corredor do lado da Casa reservado à família de Dambirá, Dona Deni, do alto de seu conhecimento, parecia uma rainha. Não daquelas de contos de fada, mas uma rainha de verdade, que não ostentava sapiência, mas que em horas de conversa nos dava lições de vida. Dali dava aulas aos mais graduados pesquisadores com seus conhecimentos sobre o culto mina jeje deixado pelos escravizados que aqui estiveram e que fundaram a Casa das Minas. Era uma rainha africana.
Direta, franca, positiva, era mulher de poucas, mas precisas palavras. Tinha caráter sólido e posições firmes, traços que revelavam uma personalidade marcante - peculiar aos grandes sábios. Sem dúvida uma grande mulher.
Gostava de contar sua história e se emocionava ao narrar a primeira vez em que o vodum Bedigá, da família de Davice, incorporou em sua mãe. Viveu os tempos áureos da Casa das Minas e sentia-se orgulhosa de ter tido o privilégio de conviver com Mãe Andresa, de cuja generosidade Dona Deni colecionava vários episódios. Eram tempos de fartura na Casa das Minas, que recebia muitas doações, principalmente de gêneros alimentícios, que possibilitavam que a Casa mantivesse o apoio aos mais necessitados que ali chegavam.
Com certa melancolia, lastimava a situação atual da Casa das Minas, que já não recebe donativos como nos tempos de Mãe Andresa, o que pode ser atribuído ao individualismo característico do mundo atual e à proliferação de crenças e igrejas na sociedade moderna.
Respeitava e obedecia aos voduns. Pedia que Zomadonu, o dono da Casa, enviasse sua sucessora, para que a Casa das Minas se perpetuasse. Tinha um conhecimento acumulado pela convivência com as antigas vodunsis da Casa e uma consciência firme de seu papel de guardiã do culto e daquele templo religioso. Não arredava o pé da Casa das Minas porque deveria estar em vigília constante, à disposição daquele que batesse à porta em busca de tratamento para as coisas do espírito. Por isso zelava pela Casa das Minas para que os preceitos do culto mina jeje fossem mantidos. Guardava os segredos como quem guarda um tesouro. E era, para ela, de fato, um tesouro: o legado que as divindades do Abomey nos deixaram. Comandou a Casa das Minas com sabedoria singular, associando a devoção católica ao culto aos voduns.
Tinha um jeito didático de explicar, à luz do culto mina jeje, o porquê da obediência aos voduns e o porquê das catástrofes naturais, dos terremotos, dos tsunamis, dos dramas das famílias - com a avassaladora epidemia do narcotráfico; e das patologias sociais em geral.
A Casa das Minas não é importante só pra o Maranhão como muitos pensam, dizia Dona Deni. É importante para todo o Mundo. Essa era a sua visão do culto, fundada numa cosmovisão em que o culto aos voduns poderia não só ajudar as pessoas que para a Casa se dirigiam, mas até salvar o planeta.
No dia de sua partida, caiu uma chuva tímida, num dia ensolarado, quando todos se preparavam para levar o corpo de Dona Deni à morada final. Coincidência? Não. Eram as lágrimas de Nochê Sobô se despedindo da velha matriarca da Casa das Minas. Um agradecimento pelos anos de dedicação ao culto aos voduns.
A partida de Dona Deni deixou uma dor muito grande naqueles que aprenderam a gostar dela do jeito que ela era. Uma mulher silenciosa, lacônica, taciturna, séria, às vezes zangada. Não era pessoa difícil. Talvez castigada pelo sofrimento que a vida lhe impôs, de mulher pobre, vinda do interior com sua mãe que buscava cura na Casa das Minas.
Para quem aprendeu a dialogar com Dona Deni - num diálogo em que ouvir era mais importante que falar; e a conhecer aquela mulher de forte personalidade, a matriarca da Casa das Minas era uma sacerdotisa que carregou sobre seus ombros, ao longo de mais de 70 anos, uma grande responsabilidade: preservar o culto aos voduns. E para isso, como chefe da Casa, fez a opção de manter a dignidade e a integridade do culto num mundo transformado, de valores questionáveis, onde parece não caber mais os códigos e normas do mundo sagrado das divindades africanas. Com muito zelo cuidou da Casa das Minas. Cumpriu sua missão como uma grande sacerdotisa que foi.
Nós agradecemos todo o teu esforço e o teu empenho na preservação dessa herança para nós deixada por nossos ancestrais.



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